domingo, 22 de julho de 2007

VARAL VIRTUAL - ALEXANDRE BRITO

UMA VELA À NOSSA SENHORA DA BOA MORTE

a liberdade bastarda se infiltra onde
o céu encontra a terra
denuncia intensa atividade literária

essa idéia no papel derramada assim feito gelatina
nem parece uma idéia parece mais um
estorvo feito de cimento e osso

o sol miúdo sem bolor entesourado e mudo
desonera de rapapés e obrigações um aglomerado de
letras na biblioteca universal dos manuscritos

toda tradição se renova pela libertinagem
a boa nova vem pelo esquecimento intencional das regras
um livro que não descenda de nenhum outro é uma indecência

de sorte que o pecado original da invenção
mais que matar o padre e ir ao cinema
é declarar-se órfã pretender-se sem pai sem par

numa semana ensolarada de 22
um bebê de proveta aproveita a tarde à beira mar
no calçadão desenhado por Niemeyer




O JOGO DAS MIL IMPERFEIÇÕES

o jogo começa sem regras.
um feixe de luz ruga adentro trespassa a pele de um segundo.
um silêncio depois, o silêncio árido. o interstício.
um não-lugar um não sei onde. onde nada ou quase nada
desacontece.

o tempo sinuoso tem o passo lento dos camelos.
não faz evocações a deus algum.
ainda que o criador seja designado em árabe
por quatrocentos e noventa e nove nomes diferentes,
não faz diferença. ninguém é escutado nunca.

amigo dos corvos o espaço é um ser imberbe.
um passeio no deserto nunca é um passeio no deserto.
a sede não cessa com a morte. nem a morte com a salvação.
Bérberes, Beduínos, Tuaregues, bem o sabem, pois as
tempestades de areia não apagam o que com areia se escreve.

mil e uma noites de repouso numa tenda sob o céu à beira do Tigre,
quarenta banhos batismais à luz do dia nas águas do Jordão, não
recompõe o descrente fatigado. um espelho que não reflete, não é
um espelho. quando ninguém sabe dizer com quantos corpos se faz um
cementério, o mundo vertical vem a baixo. sangra em transe a noite possível.

alguém com pouco passado não tem o que dizer.
um poeta demora. ao contrário do profeta sabe a verdade provisória.
nasce sem saber. morre sem saber. e como quem nada sabe
esconde-se atrás das palavras. não para que encontrem-no,
mas às palavras.

tamareiras ensombram o caminho a Bagdá.
o vento milenar sopra sobre a cidade três vezes santa.
dois meninos, órfãos, de etnias distintas,
dois olhos de um mesmo rosto sob o sol
estudam álgebra entre formigas e abelhas.

um sonho encravado na carne é o mundo.

Nenhum comentário: