sexta-feira, 31 de agosto de 2007



A LIBERDADE EM DEDÉ FERLAUTO*

Nei Duclós

* Originalmente publicado no blog
Outubro.blogspot.com

“Peço demissão do cargo de habitante do planeta”
(trecho de uma carta de Dedé endereçada a mim, datada
de 27/abril/1977)

Foi-se, nesta madrugada de 24 de agosto de 2007, o
poeta Dedé Ferlauto, partindo o coração de todos os
seus amigos e de uma família brilhante, de um músico
(Leo), um arquiteto (Cláudio), um engenheiro (Felipe),
mais a família que ajudou também a inventar, mulher,
filhos, netos, enfim, todas as pessoas que conviveram
com ele nesta curta/longa vida. Palavras não servem de
consolo, ainda mais partindo de mim, que há muito
tempo não conversava com ele. Soube recentemente que
ele estava morando no sul da ilha. Mas, como disse em
meu livro Outubro, que Dedé gostava demais: a
linguagem é a única arma que eu disponho.

Fui amigo de Dedé, mais intensamente por um tempo, do
final dos 60 até o final dos anos 70, quando então nos
correspondíamos por carta, eu em São Paulo iniciando
uma vida dura na megalópole, ele, mais lúcido,
refugiado em Sapiranga, interior do Rio Grande do Sul.
De lá me enviou confidências e poemas. Um deles, Furto
Qualificado, diz assim: “Por todas as frestas/ de
todas as paredes/ desta casa/ muitos olhos espreitam/
consultam/ memorizam/ e sons são sugados,/
magnetizados/ por todos os poros/ da casa/ do corpo/
das palavras(...)”

Tomei conhecimento de Dedé Ferlauto quando vi, colados
em azulejos, selos/poemas assinados por Zé Liberdade.
Era ele. “Me sinto por fora desta coisas que andam
acontecendo entre as pessoas que escrevem, revistas,
editoras, livros e outros.”, me escreveu ele anos mais
tarde. “Os caras andam muito chatos com essa mania de
querer fazer História. Acho um saco. Caí fora. Me
sinto sem norte, sozinho e não me assusto”. Via-se
como um anarquista. Vejo-o como um outsider sincero,
que viveu integralmente sua literatura, a que fisga
pela vocação e carrega a criatura escolhida por toda a
vida.

Suas palavras, como de todo poeta, são proféticas.
Veja o que disse no final dos anos 70: “Ando
contrariado com minha vida profissional” (e quem não
anda, Dedé? acrescento agora eu). “O que é um
jornalista hoje em dia, salvo exceções? Não estou mais
aí pra andar informado da merda mundial.” Ele estava
em outra: “Enquanto isso vou procurando caminhar com
minhas próprias pernas e levando minhas palavras por
aí afora, como quem não quer nada. Quer nada? Como
quem? Como? Quem? Quer? Nada?”

Numa carta coletiva/manifesto, deixou claro sua ação
poética em trechos selecionados de grande lucidez: “É
compreendendo a angústia que se resolvem problemas, e
concomitantemente é compreendendo-a que ela se dissipa
numa grande e violenta atividade de criação. É olhar
para dentro, para mim, é tentar compreender as
linguagens que nos cercam (como as abelhas, como as
plantas, como a biodinâmica, como o ciclo de vida nas
plantas, hortaliças etc.) e pelas linguagens que
utilizamos para a nossa criação (abaixo a arquitetura,
viva a agricultura!). É dentro da angústia, da
indecisão, que é possível localizar o desconhecido, o
novo. “

Dedé não quis compactuar com políticas, grupos,
panelas. Preferiu a solidão poética, a verdadeira, a
que jamais consola, pelo sofrimento que provoca, mas a
única que garante a liberdade. Ele escolheu a
liberdade numa época em que tudo foi datado,
classificado, organizado, definido. Por isso Dedé
Ferlauto é uma prova viva de que podemos ser criaturas
livres, mesmo que isso nos custe uma vida difícil, mas
jamais apartada da grandeza.

Foi-se Dedé Ferlauto. Seus agitos continuam. Longa
vida à sua obra
............................................................................................
TRÊS POEMAS DE DEDÉ FERLAUTO

ARMA

QUANDO ACORDARES
E NÃO ESTIVERMOS AO TEU REDOR
LEMBRA ISSO
O AMOR É O ÚNICO RECURSO
A ÚNICA ARMA
MESMO QUANDO CHORARES
ESQUECIDA
E ABANDONADA NAS ESQUINAS
O AMOR É A ÚNICA ARMA
QUE PODERÁS PORTAR
E USAR SEMPRE





SILÊNCIO

DOR SENTIA QUANDO LEMBRAVA
QUE TUDO O QUE QUERIA DIZER
ANDAVA AFOGADO
NAS SUAS PRÓPRIAS PALAVRAS




QUANTO MAIS
BATO ASAS
MAIS CRESCEM
MINHAS RAÍZES

Um comentário:

Clovis Heberle disse...

A foto de Dedé Ferlauto bebendo água da sanga (acima) foi tirada num domingo ensolarado do verão de 1996 no sítio de Barbosa Lessa no interior de Camaquã. Este dia inesquecível, compartilhado pela Usha e pela Ana Zilles, está descrito em "A Perfect Day" no blog CORRECAMINOS(clovisheberle.blogspot.com).